quarta-feira, 6 de outubro de 2010

É possível um Estado laico sem uma sociedade laicizada?

É possível um Estado laico sem uma sociedade laicizada?

Essas eleições começaram num ritmo lento, é verdade. Mas, aos poucos, foram ficando um pouco mais parecidas com o processo eleitoral com o qual já estamos acostumados. Na falta de uma divergência significativa em torno do plano de governo propriamente dito, o foco das divergências acaba migrando para questões que inicialmente não estavam na pauta e, dentre essas, a mais evidente de todas é a polêmica em torno da posição de Dilma Roussef sobre o aborto.

 Serra não explicitou o que pensa a respeito, mas, considerando sua trajetória política e intelectual, duvido muito que, ao menos pessoalmente, considere um "dever moral" a manutenção da criminalização do aborto. Tudo o que afirmou é que não é "duas caras"...

Marina deixou clara sua decisão: é contra, mas estaria disposta a fazer um plebiscito sobre a questão. Ora, do ponto de vista do eleitor, fazer um plebiscito não tem nada de problemático, é jogar para a sociedade uma controvérsia nem um pouco tranquila, e cujo resultado não é muito difícil de ser antecipado. Mesmo que um plebiscito tenha sempre um lado "pedagógico", na medida em que favorece a ampla discussão do tema em questão, não acredito que seja a solução para todos os impasses. De início, confesso, vi com bons olhos as declarações da Dilma de que "aborta é uma questão de política pública" pois, ingenuamente, achei que as reações a essa declaração seriam menores, e que tratar desse tema em uma campanha presidencial seriam sinal de que nossa sociedade civil já estaria suficiente madura para aceitar a pauta, assim como mostrou-se madura ao não fazer desta uma guerra entre gêneros. O fato de Dilma e Marina serem mulheres, e estarem entre os três principais candidatos, não foi tema de qualquer impasse, nem de um lado, nem de outro.

Mas, retomemos a questão. Qual pode ser o real impacto das polêmicas em torno do aborto para o resultado final das eleições, é algo difícil de ser antecipado. Mas, ao que tudo indica, essa questão foi mais importante para a não eleição de Dilma no primeiro turno do que as tramóias ligadas à casa civil e do que as denúncias de que o pt haveria investigado ilicitamente a situação da filha de Serra na Receita. Tudo isso foi noticiado na imprensa à exaustão, mas parece que teve pouquíssima influência sobre os números. Mas, enquanto a imprensa noticiava em letras graudas esses escândalos, na internet circulavam numerosos vídeos que podem ser resumidos em um dos slogans presentes em tantos deles "quem é a favor da vida, não vota no pt". Como se não bastassem os vídeos no youtube, em todo e qualquer "painel do leitor", rede social, fórum, etc., se lia muitos e muitos comentários que reiteravam essa mesma posição, sempre de forma bastante colérica. Em relação à posição contrária, ou seja, entre aqueles que lamentavam a posição anti-descriminalização do aborto de Marina, ou os subterfúgios de Dilma para amenizar sua posição, quase nada se via, a não ser para acusá-la de "duas caras". Basta "dar um google" para que se perceba que os que se auto-denominam "a favor da vida" se manifestam em muito maior número e, certamente, são consideravelmente mais agressivos e intransigentes em suas posições.

Também pudera, questionar a não criminalização do aborto é mexer com o "sagrado". Sim, é mexer com uma questão que, para a maior parte da população, não é suscetível à discussão, está acima da reflexão. Assim como, é claro, as pesquisas com células tronco e mesmo no que se refere a outro tema que, por incrível que pareça, ainda é polêmica, qual seja, a igualdade dos direitos nas relações homoafetivas. Para determinados grupos religiosos, que não são em pequeno número, esse tipo de assunto não é tema para debate. São proscritos, são inquestionáveis, fazem parte de um universo de certeza moral. Por isso, qualquer um que se meta à besta de defender a posição contrária é rapidamente identificado com as forças do mal, com o próprio demônio, com aquilo que se quer combater a qualquer custo.

O fato é que talvez não tenhamos nos dado conta do forte enraizamento dos novos movimentos religiosos - tanto católicos quanto evangélicos - pelo nosso "Brasil Profundo". Passamos por alguns canais, enquanto navegamos com o controle remoto da televisão, ou vemos um ou outro vídeo na internet, e apenas achamos alguma graça naquele modo teatral com o qual os pastores se dirigem aos fiéis - cada vez mais imitado pelos padres. Ou nos perguntamos como podem dar dinheiro aos pastores em troca de promessas de sucesso nesta vida ou na outra. Mas tudo isso com enorme distanciamento, como se esse fosse um mundo que não tem nada a ver com o nosso. Ledo engano. Tudo o que acontece em nossa sociedade não deixa de ter impacto sobre a vida do país em seu conjunto. Quando ignoramos que a base moral de nossa sociedade torna-se cada vez mais próxima de um fundamentalismo religioso, corremos o risco de, no longo prazo [talvez não tão longo assim], ter nossa esfera de liberdade e de reflexão cada vez mais restringida, de ver em xeque tudo aquilo que consideramos um ganho de nossa sociedade moderna - como uma ciência autônoma e progressista, a autonomia intelectual das universidades, a possibilidade de ensinar coisas como o darwinismo em nossas escolas.

Não tenho qualquer intenção de ser alarmista, não creio que essa seja uma realidade em vias de consolidação. Quero apenas expressar a minha opinião sobre o estado da questão, e reafirmar a minha convicção de que nem tudo o que hoje está dado poder ser tido como garantido. E vemos o impacto disso já nesse processo eleitoral. Na impossibilidade de lidar com essas questões de forma madura e esclarecida, o debate parece dar um passo atrás, afinal, o candidato que não se declarar "a favor da vida" - seja lá o que isso signifique! - não tem qualquer chance real de vencer a eleição. E a contrapartida desse debate esquisito e mal feito é o não debate de outras questões que deveriam estar em pauta, como as agendas sociais, políticas, econômicas, ecológicas, etc. dos candidatos.

Certamente com isso não quero dizer que questões morais não possam e não devam entrar na agenda de uma campanha eleitoral. O que quero, sim, é apontar os problemas imanentes a uma sociedade civil não esclarecida. O avanço realmente democrático de qualquer processo de deliberação não pode se dar sem pressupostos, e dentre eles, talvez o mais fundamental seja a consciência de que nossas leis e de que nossos valores morais são criados por ninguém mais, ninguém menos do que nós mesmos, seres humanos em interação no contexto de uma determinada estrutura social.

Resumindo a questão: porque uma eleição à presidência da república, de uma hora pra outra, se vê pautada por um debate protagonizado por pontos de vista essencialmente religiosos? O presidente da república não deveria estar num patamar que se põe acima das contingências religiosas e falar em nome de princípios racionais, uma vez que nosso Estado afirma-se como sendo laico? Ora, a grande questão é que talvez não seja possível um Estado efetivamente laico sem uma sociedade laicizada. O que isso quer dizer e como isso seria possível, é assunto para um outro dia.