terça-feira, 9 de novembro de 2010

Dilemas em torno da questão do aborto: novas considerações

Escrevo esta postagem como resposta aos comentários à postagem anterior, em particular ao último comentário de TC, [veja-se a seção dos comentários à postagem "É possível um Esatdo laico sem uma sociedade laicizada?"] a quem eu agradeço pela chance de continuarmos discutindo séria e respeitosamente essa questão complicada. Precisei recorrer a uma nova postagem porque o blogger não aceita comentários demasiado longos. Pondero ainda que eu não serei capaz de responder plenamente a todas as ponderações levantadas. Tudo o que posso é indicar em linhas gerais o meu posicionamento a respeito de questões específicas. Dessa vez começo pelo final, e gostaria de primeiro distinguir a questão do direito das relações homoafetivas, com a garantia da união civil, da questão do aborto. É certo que são duas questões ainda controversas, se tomarmos a sociedade em seu conjunto, mas não as vejo da mesma forma. A questão da união homossexual, acredito, dificilmente pode ser recusada de um ponto de vista não-religioso, isto é, se não aceitamos o argumento “Deus não quer”, não vejo outro qualquer que justifique sua recusa. O outro ponto que você levanta, relacionado a isso, é mais intrincado, qual seja, quem é a opinião pública e o que é auto-determinação. Primeiro, não creio que a opinião pública possa ser equivalente de “opinião da maioria”, o que é um dilema filosófico bastante discutido. Em segundo lugar, não acredito que quem apoie a união homossexual sejam apenas homossexuais e feministas. Eu não me considero nem uma coisa, nem outra, ainda assim sou favorável a essa causa, assim como muitíssimas pessoas que acreditam no direito fundamental a se viver do modo que se quiser, desde que seu modo de vida não interfira na liberdade do outro. Agora você poderia me perguntar: e a união homossexual não pode agredir o modo de vida de determinados grupos religiosos? Sim, talvez, para aqueles que consideram isso algo absurdo, impuro, mas ai entramos no problema do embate do multiculturalismo versus direitos fundamentais do liberalismo. Do ponto de vista dos direitos liberais, prevalece o direito dos homossexuais a se unirem livremente, na medida em que se trata de uma liberdade pessoal, que não coage o outro a agir do mesmo modo, enquanto, desse ponto de vista, a reivindicação de um determinado grupo religioso de que isso seja proibido implicaria, sim, na negação da liberdade dos homossexuais, porque o modo de vida religioso [um modo de vida hipotético, não me refiro a nenhum grupo específico] se expande para além de seus limites e o impõe ao conjunto da sociedade. Se ficarmos com o ponto de vista multicultural mais radical, bem, aí não me parece ter outro resultado possível além de um conflito infindável. Acho que o respeito às liberdades individuais também é uma forma de crença mas, a meu ver, ainda é a melhor, na medida em que é a mais ampla, mais formal e mais passível de ser aceita quase consensualmente. Assim, a opinião pública a que me refiro é essa opinião coletiva que foi sendo construída pelo menos desde o Século XVIII, na qual esses valores de respeito ao indivíduo, à autonomia da sua vontade, ao questionamento racional do mundo foram se tornando parte da consciência coletiva, sendo inscritos nos códigos jurídicos, nas expressões artísticas, na moral das sociedades ocidentais.
Voltemos à questão do aborto. Creio que ela seja muito mais complicada que a questão homossexual, pois a primeira se resolve facilmente com qualquer versão não religiosa do “respeito ao indivíduo” que se adote, enquanto o aborto permanece um dilema ético de difícil resolução. Você pergunta se alguém deve ser condenado a morte se existe 99% de prova de sua culpabilidade. Eu diria que não, aliás, mesmo que houvesse 100% de culpabilidade, porque aqui está em jogo se devemos eliminar a vida de um ser humano em virtude de atos que ele cometeu, isto é, trata-se de uma punição refletida sobre um ato delituoso. O aborto não tem absolutamente nada a ver com isso, não se trata de uma condenação. Se trata de saber, primeiramente, o que constitui a vida. É uma questão repleta de gradações e creio que cada uma delas deva ser tratada separadamente. Aborto em caso de feto anencefálico põe em questão se se pode dizer do ser em questão que seja propriamente um indivíduo, ou se deve traze-lo ao mundo, dada sua absoluta incapacidade de viver fora do útero. Essa é uma questão em relação a qual a justiça brasileira, por exemplo, já se pronunciou. Outra coisa são as situações em que há risco de vida para a mãe, independente da idade do feto, situação em que há, conforme o caso, duas vidas em jogo, e não creio que exista um critério seguro e absolutamente certo para decidir entre ambas. Finalmente, há a questão, que já disse antes, de se determinar em que ponto podemos dizer do embrião ou do feto que seja propriamente uma pessoa. Para os católicos, passa a existir vida a partir do momento em que o espermatozoide encontra o óvulo. Para a ciência, não existe uma determinação consensual sobre quando começa o que chamamos de “ser humano”, mas existem, por exemplo, parâmetros tais como o momento em que se forma o sistema nervoso, que é quando existem condições para que o feto tenha “sensações”. Creio que uma das justificativas plausíveis para a decisão de se praticar seja essa que se apoia nesses dados que estabelecem que antes de um determinado período o feto não possui um sistema nervoso constituído, assumindo-se que antes disso não podemos falar da existência de um ser humano, que sofreria com o ato. Quanto ao ser-próprio da mulher, uma visão diferente é aquela que afirma que o constitui o ser da mulher não é o ser-mãe, ser mãe é uma escolha que a mulher pode fazer e, a partir do momento que o faz, tem o dever de zelar pelo novo ser que decidiu criar [há argumentos biológicos, antropológicos e sociológicos a esse respeito, mas tratar deles aqui tomaria muito tempo]. Mas agora chego no ponto de suas considerações que vejo como o mais interessante e fundamental, que é a oposição que você faz entre “verdades inteligíveis” e completa subjetividade que justifica um posso-querer arbitrário. Primeiramente, gostaria de saber o que você chama de “verdades inteligíveis”, e com base em que sistema de princípios fundamenta sua afirmação a respeito desse ser-próprio da mulher [não estou refutando a validade da sua posição, mas quanto mais se souber o ponto de partida, mais claro pode ficar o debate]. A segunda questão é que não acredito que a oposição se dê entre verdades inteligíveis e completa subjetividade. Um sistema de valores a partir do qual operamos é em si mesmo um fundamento ético para nossas escolhas, que não é em nada subjetivo, mas é inter-subjetivo. Agora tendo a falar a partir da teoria do autor com o qual eu trabalho, que defendeu [e tentou mostrar a partir de estudos empíricos] que os valores “humanos”, isto é, da coletividade, são sagrados, porque aquilo que é sagrado [tanto o sagrado religioso, quanto o sagrado laico e até mesmo o sagrado – enquanto inviolabilidade – dos sistemas filosóficos] o é justamente porque é produto da coletividade, porque são ideias que em algum momento da história adquiriram um estatuto muito especial, porque pareceram razoáveis e fundamentadas às consciências que, a partir de um mecanismo de transfiguração, passaram a gozar de um estatuto sagrado, constituindo-se como ideais a partir do quais regulamos nossas vidas. E com essa afirmação esse autor não pretendeu diminuir esses valores, muito ao contrário, ele tinha uma grande “fé” na capacidade do gênero humano de, a partir do constante e ininterrupto debate, criar ideais que sejam cada vez mais propriamente humanos. Mas quando certas questões não são objeto de um consenso, como o caso do aborto, a coisa mais razoável a se fazer é continuar debatendo com os melhores argumentos que se puder encontrar, quem sabe, em algum momento, chegaremos a uma posição mais consensual a respeito, fundamentada a partir de um ideal que nos parece o melhor possível – embora nada garanta que isso irá acontecer. Não é porque uma questão parece difícil que devemos tentar achar imediatamente uma resposta definitiva, apenas para não ficarmos em suspenso. E isso não me parece constituir uma ameaça a consensos já estabelecidos, que são “sagrados” para o conjunto da sociedade e que ninguém ousa questionar, como, por exemplo, a condenação à pedofilia, ou simplesmente a interdição de matar qualquer um que divirja de nós ou nos cause incômodos. Mais uma vez, dizer que isso é um sagrado construído pela sociedade no decorrer de sua história não diminui em nada seu valor, mas é uma lembrança de que devemos zelar por eles, porque são valores que definem quem nós somos. E é preciso lembrar que esses nem sempre foram valores consensuais, basta lembrar que já se apoiou e se justificou a queima dos hereges na fogueira, que o povo apoiou a condenação de Sócrates e que Cristo não teria sido crucificado se não se tivesse apelado à vontade da maioria. Ou seja, nem sempre o que será o ideal de amanhã encontra pleno respaldo na opinião pública de hoje, embora seja do seio da opinião pública que surgirão os novos ideais que irão orientar nossa ação e nosso pensamento.