quinta-feira, 11 de abril de 2013

Sobre cachorros, praças e seres humanos

Uma das características constitutivas da modernidade tem sido uma valorização crescente dos espaços públicos. É a ideia de que uma cidade não é apenas um conjunto de casas e estabelecimentos comerciais interligados por estradas, pelas quais as pessoas transitam de forma privada, para atender a seus interesses individuais. Um espaço público é aquele criado com a intenção de ser compartilhado, no qual as pessoas podem ter momentos de lazer, de discussão, de protestos, ou, simplesmentes, de dolce far niente. Da forma como eu vejo as coisas, uma cidade é tanto mais humana, tanto mais "civilizada" e avant garde, quanto mais cuida das pessoas que nela vivem, e quanto mais espaços públicos ela provê a seus cidadãos.
A partir dessas considerações gerais, gostaria de passar a uma situação mais particular, e falar da questão do espaço público na cidade que escolhi para morar: Porto Alegre. Desde a época que vinha para cá como "turista", uma das coisas que mais me chamavam a atenção eram as praças e os parques. Não são apenas parques muito bonitos, mas são parques frequentados. E as pessoas que frequentam parques e praças são o que tornam esses lugares vivos, espaços efetivamente públicos. 
E como eu achava lindo, lá na Redenção [nome carinhoso pro Parque Farroupilha], aquele espaço no qual os cachorros corriam soltos, o chamado "cachorródromo".
Esse foi, sem dúvida, um dos motivos que nos fez querer mudar pra Porto Alegre. Eu, Paulo e Filomena, a nossa border-lata. Logo que nos mudamos, descobrimos que havia outros espaços na cidade em que pessoas e cachorros convivem muito bem, como no Parcão [Parque Moinhos de Vento] e no Parque Germânia. Que alegria descobrir que em Porto Alegre as pessoas não apenas gostam de parques, mas também gostam e cuidam de seus cães.
E não tardou a descobrirmos o "nosso" cachorródromo, ou seja, aquele lugarzinho especial onde poderíamos levar a Filó pra passear, livre, leve, solta. Não apenas passear, mas correr, brincar muito: o "cachorródromo do DMAE", ou, como chamamos, a "pracinha dos cachorros". Lá, não apenas os cães se divertem, em vários horários do dia, de manhã até a noitinha, mas nós, os "pais", também fazemos grandes amizades. São pessoas das mais diversas profissões, de todas as idades, de diversas classes sociais, diversos gostos musicais, gremistas, colorados, ou nenhum nem outro. Lá, as nossas diferenças não importam, o que importa, e que constitui a base da nossa amizade, é o amor que temos por nossos cães, por cães, por animais. 



Ora, pois, mas porque cargas d`água falar do "cachorródromo do DMAE" num blog como esse aqui, que tem a intenção de discutir questões filosóficas, sociológicas e achológicas? Quem tiver a paciência de ler até o final, logo descobrirá... 
Antes, porém, algumas considerações sobre fatos recentes, que me motivaram a escrever aqui. Nesta segunda feira, quando fomos para a praça, nos deparamos como uma "sutil" mudança no cenário, mas que indicava uma profunda mudança na forma de tratar o lugar. As portas da praça estavam "abertas com cadeado". Não, não foi um erro de digitação. Havia uma corrente prendendo a porta de modo a que ela ficasse necessariamente aberta, como na foto abaixo, tirada pela Ana Goelzer:



Bem, talvez o leitor agora esteja se perguntando qual o problema de uma porta "aberta com cadeado". Para enteder do que estou falando, é preciso ter em consideração o fato que fazia dessa praça a "praça dos cachorros", um lugar ideal para levarmos nossos companheiros é justamente o fato de se tratar, até então, de um lugar completamente fechado, e, em consequência, 100% seguro. Nós sempre mantemos a porta fechada [não trancada], para evitar que os cães fujam. Outro fato a ser considerado é que, até bem pouco tempo, essa era uma praça praticamente abandonada, destinada a usos pouco higiênicos e para práticas bastante ilegais, se é que o leitor me entender. Ela não era um espaço público... era um espaço apropriado para fins privados [para não dizer, como privada mesmo, com perdão do trocadilho infame]. Aos poucos, os moradores da região começaram a frequentar o lugar, ocupar mesmo, e a praça voltou a ser um lugar público. Acho que qualquer morador de Porto Alegre conhece a praça "oficial" do DMAE, aquela bem bonita, linda mesmo, com entrada pela 24 de Outubro, com seus jardins bem aparados, onde famílias vão fazer piqueniques nos finais de semana. Mas a pracinha dos cachorros permaneceu durante muito tempo um lugar abandonado, o que se nota ainda pelos brinquedos em frangalhos, bancos quebrados, ausência de lixeiras, bebedouros e todas essas comodidades que encontramos nos parques cuidados. Mas, mesmo assim, nós, os frequentadores, voltamos a dar vida à praça, procuramos cuidar dela com carinho, providenciamos saquinhos para que a sujeira dos cachorros não fique no chão, coisas assim.
Enfim, voltemos à porta aberta com cadeado. Evidentemente, diante desse grande inconveniente, alguns de nós procuraram o pessoal do DMAE, para tentar esclarecer o fato. Resumindo a novela, parece que houve reclamação por parte de moradores da vizinhança, que não gostam de ver cachorros soltos ali na praça, porque cachorros latem ou algo assim... E o argumento da administração do DMAE, até o presente momento, é o de que a porta deve permanecer aberta para facilitar o acesso do público e para encorajar que nós não deixemos nossos cães soltos, afinal, há uma lei que proíbe que cães estejam sem guia em espaço público. Vou me abster de dar minha opinião sobre a lei. Então, ok, em vez do bom senso de continuarmos essa prática de ocupar uma praça que só é frequentada por pessoas que vão com seus cães, vamos aceitar que o DMAE se apegue a essa lei e nos impeça de continuar a prática que ali tivemos. 
Ora, essa solução, do modo que vejo, é a mais burra possível. Há uma outra, muito mais inteligente, muito mais benéfica pra todo mundo: é oficializar aquele espaço como um espaço para cachorros, seguindo a proposta do vereador Elias Vidal para a criação de um espaço "regulamentado" para cães no Parque da Redenção. Mas por que o DMAE deveria fazer isso? Por que essa deveria ser uma decisão incentivada pelo poder público? Por que não fazer dessa praça apenas mais uma como todas as outras, em que cães são tolerados apenas nas coleiras?
Pois bem, é aqui que eu queria chegar. É por isso que resolvi escrever esse post, para ensaiar uma resposta a essas questões. O ponto de partida é: o mundo está mudando, a nossa sociedade está mudando. No contexto em que vivemos, há um número cada vez maior de pessoas que se relacionam com seus cães como membros de sua família, e uma vez que os adotam, comprometem-se em lhes dar a melhor vida possível. Afinal, o cão não escolheu estar ali, e é nossa responsabilidade suprir suas necessidades básicas, e o exercício físico está entre elas. Eu poderia discutir a questão a partir do tema mais complexo do direito dos animais, mas hoje proponho uma reflexão que passa por outro caminho. O que quero dizer é que não se trata apenas de uma "praça para cachorros", mas de uma praça para pessoas que querem ir com seus cachorros, querem correr e brincar com seus cachorros.
Imaginem só se nos parques proibissem as crianças de brincar e correr! A ida ao parque perderia toda a graça. Para aqueles que tem cachorro, é mais ou menos a mesma coisa. Se, por razões diversas, não é possível que cachorros e seres humanos sempre compartilhem o mesmo espaço, seria uma medida extremamente inteligente criar espaços especificamente destinados a essa finalidade. 
Afinal, essa é uma demanda real de pessoas reais. Reais e cada vez mais numerosas. E, até onde sei, uma das grandes virtudes da democracia, especialmente em sua vertente mais contemporânea, é encorajar as diferenças, é criar um espaço público plural, no qual pessoas diferentes com interesses e visões de mundo diferentes possam participar dele. Quanto mais diversidade tivermos, melhor, ainda que para que essa diversidade ser possível seja preciso criar nichos específicos. É claro que não se trata de criar um espaço no qual só possam frequentar pessoas com cachorros, mas de um espaço no qual os cachorros tenham o direito de circular livremente, brincar uns com os outros, com pessoas que, com cachorros ou não, não se importem de ver animais felizes, que não se importem de correr o risco de levar uma lambida na cara, ou de ter sua roupa suja pela marca de patas amigas que pulam para dar um afago. Claro, todos precisam ter bom senso; não levamos a um espaço público cachorros que não interagem bem com outros cachorros ou com outros seres humanos, nem achamos que ali é um vale tudo. Assim como pais com seus filhos, tornamos esse lugar um espaço de eduacação, para criar bons hábitos, e cachorros felizes são cachorros educados, são cachorros que não são agressivos, são cachorros que nos fazem lembrar por que essa espécie foi merecedora do título de "melhor amigo do homem".
Resumindo, criar espaços como esse, que estamos sugerindo que sejam criados, é estar na vanguarda. É ter ideias inteligentes para fazer da nossa cidade um lugar cada vez melhor, em que cada vez mais pessoas tenham vontade de sair do confinamento de suas casas para compartilhar com outros momentos ao ar livre, que nos fazem pensar naquilo que há de tão bom na vida em sociedade: a própria possibilidade da interação. A interação não apenas com outros seres humanos, mas com outros seres que, por alguma razão, escolhemos como nossos companheiros cotidianos. Se nem todos os homens se sentem comovidos pela amizade que podemos criar com cães - e ninguém tem a obrigação de gostar deles, não mesmo - temos ao menos o dever, enquanto seres humanos de nosso tempo, de respeitar o direito de outros seres humanos que consideram essa amizade algo tão crucial em suas vidas. Por isso, esse é um fato tão importante.
Creio que o "caso do cadeado no DMAE" seja uma ocasião ímpar de reflexão e mobilização. De pensar em que cidade queremos. E também é o momentos dos órgãos públicos decidirem se aceitam a nossa reivindicação de pluralidade de espaços públicos, criando oficialmente o "cachorródromo do DMAE", ou se ficam presos às ideias antigas de uma sociedade que se apega comodamente às leis, só para que nada mude e, ao não mudar nada, acaba por retroceder a um passado que já não nos diz respeito. 
Eu, e meus "companheiros de praça", caninos ou humanos, queremos olhar pra frente, e queremos contribuir para a ampliar a noção do que é um "espaço público", com o espírito de reinventarmos a nós mesmo e o lugar em que vivemos.