sábado, 19 de março de 2016

Sobre corrupção, democracia e golpe


Quando nasci, a ditadura vivia seu ocaso, e quando aprendi a ler e a escrever, já era parte do passado. Nunca senti na pele o que eram aqueles tempos, mas as descrições dos livros de história e sobretudo as experiências narradas por familiares e amigos bastavam pra que me sentisse privilegiada por ter nascido em outra época. Aprendi também havia corrupção, e muita! A diferença é que não era possível a denúncia. A única coisa que se “investigava” eram crimes políticos. Descobri que o medo era um sentimento generalizado. Era todo mundo. Uma mulher poderia ser violentada por qualquer agente da lei, seu corpo seria devorado por vermes antes que fosse encontrado, e seu sumiço seria explicável pela menção de que era suspeita de ser comunista. É isso a que chamamos de estado de exceção: quando não há direitos que protegem os indivíduos contra arbitrariedades.

Sempre tive como heróis e heroínas as pessoas que arriscaram suas vidas pra acabar com aquele regime, que construíram um estado democrático de direito. Aliás, faço uma pergunta para quem defende de forma apaixonada o impeachment da presidenta Dilma e a “luta contra a corrupção” a qualquer custo: você sabe o que é um “estado de direito”? De forma simples, significa um regime político no qual a vida coletiva é regida por leis que estão contempladas na Constituição Federal. Significa que, para que um ato seja considerado crime, precisa ser denunciado e julgado por um tribunal. É por isso, por exemplo, que um indivíduo acusado de assassinato não pode ser linchado em praça pública: seu crime precisa ser demonstrado, e o tribunal decidirá qual é a pena que lhe cabe. Isso serve para que nem o Estado, nem os cidadãos, façam execuções sumárias baseadas em suas próprias noções de justiça.

Durante minha trajetória, sempre me pareceu evidente que a vigência do estado democrático de direito era um fato dado. Sempre acreditei que minha luta seria por ampliar esse estado de direito, para que tanto ricos como pobres pudessem ter um julgamento justo. Construí o meu caminho com a certeza de que a luta, agora, seria para garantir os direitos da comunidade GLBT, para erradicar o machismo das nossas estruturas sociais e psíquicas, para que as pessoas historicamente excluídas dos “bens da nossa civilização” pudessem ter acesso à educação, comida, diversão e arte.

Nunca pensei em ouvir na imprensa qualquer coisa que maculasse a inviolabilidade do estado de direito, que se justificasse o não cumprimento da legalidade para a condenação de alguém. Nunca imaginei que precisaríamos voltar a nos unir em praça pública em defesa de pilares básicos da democracia. Jamais previ que choraria por me dar conta de que preciso pensar com que cor de roupa posso sair de casa. Não passou pela minha cabeça que em uma sexta-feira às 08 da manhã eu sairia para correr no parque e sentiria um frio na espinha ao encontrar no caminho a tropa de choque empunhando armas e escudos.

Depois desse preâmbulo, vamos a algumas considerações pontuais, que resumem meu posicionamento nesse momento tão particular de nossa história. Sobretudo, espero dialogar com quem tem sustentado um posicionamento diferente do meu, mas que sei que também está comprometido com a ideia de construir um mundo cada vez mais justo.

1)    Ameaça ao estado de direito: As transformações sociais são lentas, por isso precisamos prestar atenção nos sinais, nos indicativos de tendências. A divulgação dos grampos feitos durante a operação Lava-Jato foi ilegal, muitos magistrados têm chamado a atenção para isso. Tanto o Juiz Sérgio Moro quanto boa parte da imprensa, insistem em dizer que o conteúdo das gravações é mais importante do que o fato de serem ilegais. Primeiro, não há nenhum indício de crime nas ligações divulgadas; isso bastaria para justificar que não fossem veiculadas. Em segundo lugar, no telefonema considerado mais importante, entre a presidenta Dilma e o ex-presidente Lula, houve uma manipulação do sentido, com distorção de palavras. A Rede Globo continua insistindo que o documento enviado a Lula com o texto de sua nomeação como ministro deveria servir como salvo-conduto. No entanto, como ficou demonstrado por ocasião do pronunciamento da presidenta Dilma, o documento não estava assinado por ela, portanto, não poderia ser usado para tal fim. O documento foi enviado para que o presidente Lula pudesse assiná-lo antes, caso não pudesse comparecer na cerimônia de posse. A mídia fora avisada, e ainda assim, construiu essa versão. A Globo insisti na tese de que a gravação é muito séria pois revela a intenção de obstrução de justiça. O que temos aqui são dois crimes graves: a divulgação ilegal de escutas e a manipulação de dados para a construção de uma informação equivocada.

2)    Sobre o Golpe: Há muitas formas de acontecer um golpe. Não é apenas quando o exército toma as ruas e impõe à força um regime ditatorial. Aliás, isso foi apenas uma parte do que aconteceu em 1964. Primeiro, cria-se uma imagem distorcida da realidade, dando a ideia de que se vive num caos absoluto; depois, se apresenta uma possibilidade de salvação. A primeira coisa a se considerar é que sempre há interesses em jogo. Tanto no início da década de 1960 como agora, houve um crescimento importante da esquerda e de seu projeto econômico, que ameaçava reduzir os privilégios do grande capital nacional e estrangeiro. Por exemplo, desde a descoberta do pré-sal, o Brasil vem sofrendo ataques por parte da imprensa internacional, especialmente aquela vinculada a setores interessados em sua privatização (veja na plataforma wikileaks documentos que atestam isso - eu tinha colocado o link direto para essas informações, mas aí o Facebook bloqueou o compartilhamento!). A reeleição de Dilma frustrou essas expectativas. Desde então estamos sendo bombardeados com a proposta de impeachment, que está mais assentada na ideia generalizada de que está tudo errado do que em evidências legais. O único argumento concreto é o das pedaladas fiscais que, prática recorrente, é considerada uma opção de gestão das finanças do estado. Não há base, portanto, para o impeachment. Paradoxalmente, a imprensa vem encorajando sistematicamente uma revolta popular que ataca o governo, com o pretexto de combate à corrupção. As informações são apresentadas de forma parcial, dando a ideia de que o PT é a causa de todos os problemas do país. Um golpe ocorre quando as pessoas são convencidas a acreditar em uma coisa e agir de modo a beneficiar quem constrói esse discurso. Não creio que todas as pessoas que estão na rua pedindo o impeachment defendem um golpe. Acho que boa parte é muito bem intencionada. Elas também estão sofrendo um golpe, pois são levadas a acreditar em meias verdades. Em uma leitura mais geral da situação, meu diagnóstico é o de que o golpe começou durante as manifestações de junho de 2013, quando a imprensa, de uma hora pra outra, passou a apoiar o movimento, anulou suas pautas originais e o transformou em um protesto “contra a corrupção e contra tudo o que está aí” (à época, escrevi aqui sobre isso). Pegou carona em forças catalizadoras da esquerda e elaborou um discurso de pseudo-unificação do país. Afinal, quem é contra o combate à corrupção? Com isso, conseguiu-se um mote eficiente para despertar ódio, canalizado contra um partido, contra o governo, contra a política. A busca desenfreada pelo lucro não vê cor, não vê ética, não vê pessoas. É uma lógica na qual todos os meios são justificados para alcançar um fim: lucro, dinheiro, poder. É por isso que grandes corporações internacionais apoiam guerras, não importa se justas ou injustas, e é por isso que apoiam ditaduras. Se a democracia estiver sendo rentável, ótimo, que fique. Se um programa de redistribuição de renda estiver dando lucro, porque amplia o mercado consumidor, tudo bem, pode permanecer. Mas quando democracia e a redistribuição de renda passarem a ser um problema, tchau, bye bye, hasta la vista.

Os grupos interessados em desbancar esse governo não hesitam em fazer parcerias com indivíduos com quem provavelmente não gostariam de jogar golfe, como os Bolsonaros da vida e seus apoiadores. O grande capital não se importa se há ou não legalização do aborto, se há ou não união homoafetiva. A rede globo bota beijo gay na novela porque dá audiência. Mas a questão é: nessa intenção de derrubar o governo a qualquer preço, ganha voz e legitimidade quem quer a volta da ditadura, quem não liga pra direitos sociais, quem acha que Bolsonaro deve ser o herói da nação. O grande capital não se importa de abrir a caixa de pandora, desde que isso lhe garanta a remoção dos  obstáculos aos seus interesses. O problema de negociar a alma é que chega uma hora em que se sente o mal roçando os pés. Acho que o editorial da Folha do dia 18 de Março mostra isso: Opa! Ilegalidade pode ser demais, pois ilegalidade para um pode acabar sendo pra todos. Talvez chegue um ponto em que ninguém consiga controlar Moro, que ninguém consiga controlar o ódio, ninguém consiga fazer frente a essa ideia de que em nome do combate à corrupção pode-se suspender todos os direitos.

3)    Sobre a corrupção: Eu votei no PT muitas vezes e defendo a importância dos programas sociais realizados nesses anos de governo, mas não estou dentre aqueles que acham que práticas de corrupção o isentem de julgamento. Continuo pensando que os fins não justificam os meios. Práticas ilegais estão sendo investigadas e muitos já foram condenados. Isso é combater a corrupção. O que nao se deve é colocar a lupa apenas sobre um partido num contexto de práticas de corrupção que perpassam a maior parte dos partidos e instituições públicas. Isso cria a ideia de que acabar com a corrupção é derrubar este governo. Não é. Durante este governo aconteceram as mais amplas investigações contra esquemas de corrupção. Ao contrário de momentos precedentes na história, os acusados estão sendo julgados e penas aplicadas. O intolerável são execuções sumárias, desrespeito aos procedimentos legais, o enviesamento do foco e o linchamento público. É inadmissível a instauração de um impeachment sem fundamento legal e a hipocrisia de uma comissão formada por indivíduos investigados por esquemas de corrupção.
4)    A crise: estamos atravessando uma dupla crise, econômica e política. Tornou-se pouco vantajoso para os partidos da base apoiar um governo que esta sob os holofotes da crítica pesada. Tem também o combate à corrupção, que está mexendo com as estruturas. Se o processo estivesse ocorrendo de forma sensata, sem tentativas forçadas de derrubar o governo, teríamos mais estabilidade. Sobre a crise econômica, ora pois! O governo pode não ter tomado as melhores decisões,  e não sei quais poderiam ter sido, por outro lado, tenho certeza de que o caminho não é o sugerido por seus detratores, não é o da austeridade, não é o da privatização, não é o da redução das políticas sociais, não é o seguido pela Itália, Portugal, Grécia. Em virtude de meu trabalho como pesquisadora na área de sociologia, fui convidada para falar em universidades estrangeiras e pude ver de perto, ao longo desses anos, o aprofundamento da crise econômica que resultou da adoção das políticas liberais: desemprego epidêmico, nenhum horizonte para os jovens, desmonte do estado de bem estar social, crise nas universidades, fome. Aqui, conseguimos resistir à primeira onda da crise, com uma política econômica que focava no crescimento e no investimento público. Deu certo por um tempo, mas a conjuntura política e econômica internacionais chegaram num ponto difícil de resistir.

5)    Mea-culpa: todo momento de crise abre a oportunidade para o novo, para renovar crenças, criar outras práticas, fazer um balanço do passado e sonhar com um futuro diferente. A tomada das ruas no dia 18 de março, em defesa da democracia, traz a esperança de que estamos juntos e somos muitos. Para que os ideais de justiça e liberdade continuem no nosso horizonte, precisamos fazer um esforço coletivo de reflexão. Precisamos entender onde falhamos, por que a derrubada da ditadura não bastou para consolidar a democracia como um ideal inabalável e universal do nosso país. Gostaria de concluir compartilhando algumas considerações, que são um convite para pensar sobre o futuro. O PT falhou com seus militantes ao negociar princípios, ao não ouvir de modo radical as suas bases. Certos assuntos essenciais para estruturar uma visão de mundo de esquerda não poderiam ter sido negligenciados: questões ecológicas, morais, educação, política de ciência e tecnologia. No caso da universidade, por exemplo, a transformação do meio acadêmico em um mercado ranqueado terá consequências nefastas para a produção da ciência de base e para o desenvolvimento do espírito crítico, porque o tempo da pesquisa e do pensamento estão sendo corroídos pelo produtivismo. Em relação à educação de forma mais ampla, temos pelo menos dois problemas sérios: o baixo incentivo salarial e a falta de uma educação que ensine a pensar. Nós, enquanto sociedade, falhamos em educar os indivíduos com uma forte crença no estado de direito e na importância da justiça social. Se quisermos que nossa democracia se aprofunde, precisamos trabalhar duro, para que ela se torne uma crença para todo brasileiro e toda brasileira. Só a partir dessa crença compartilhada no seu valor indiscutível poderemos ter um ambiente estável para travar nossas batalhas. Todos nós que estamos à esquerda do espectro político precisamos superar disputas fratricidas para construir lutas fraternais.


Temos diante de nós uma nova oportunidade de aliar forças na construção de um país melhor, cerrar fileiras contra um inimigo comum. Que tenhamos serenidade para aproveitar esse momento.

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